
Ao longo da última semana, o possivel estupro coletivo de uma adolescente de 16 anos no Rio
de Janeiro foi o principal assunto de várias manchetes brasileiras. Não só o
corpo da vítima foi violado por 33 homens como imagens do ato foram registradas
e divulgadas nas redes sociais pelos próprios criminosos.
Em entrevista ao Fantástico, a jovem conta que após todas as agressões sofreu ainda uma série de
humilhações: ela foi culpabilizada
por muitos — inclusive o delegado designado para cuidar de seu caso — pelo
que lhe aconteceu, além de ter recebidomilhares
de críticas e ameaças de morte vindas de pessoas do país inteiro.
É por conta desse tipo de reação que grande parte das vítimas não denuncia
os estupros e outros tipos de violência que sofre. E
não são poucas: a cada uma
hora e meia, uma mulher morre no Brasil por causas relacionadas à
violência, em sua maioria, cometidas por homens, segundo o Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada.
Mas por que quando um estupro acontece, a primeira coisa que se passa pela cabeça das pessoas é se questionar se a vítima está falando mesmo a verdade? Certamente não é o que ocorre com outros crimes, a não ser que você duvide toda vez que alguém afirma ter sido vítima de um assalto ou roubo. A resposta é simples: por conta da cultura do estupro, que é muito enraizada na nossa sociedade.
Uma série de mitos sobre o estupro e a cultura que
o perpetua são disseminados diariamente. Você provavelmente já contribuiu para isso ocorrer, mesmo sem querer.
Por isso GALILEU consultou pesquisas, relatos e conversou com especialistas
para explicar o que é esse infeliz fenômeno, como eles afeta a sociedade e, o
mais importante, como podemos melhorar.
Confira abaixo:
1
- O que é a cultura do estupro?
O termo foi cunhado na década de 70 por feministas
americanas e, de acordo com o Centro das Mulheres da Universidade Marshall, nos Estados Unidos, é utilizado para descrever um
ambiente no qual o estupro é predominante e no qual a violência sexual contra
as mulheres é normalizada na mídia e na cultura popular.
Ao disseminar termos que denigrem as mulheres,
permitir a objetificação dos corpos delas e glamurizar a violência sexual, a
cultura do estupro passa adiante a mensagem de que a mulher não é um ser
humano, e sim uma coisa. "Vivemos em uma sociedade patriarcal que
considera que nós mulheres somos ou sujeitos de segunda categoria, ou em
alguns casos, que não somos sujeitos e podemos ser utilizadas ou
destruídas", explica Izabel Solyszko, que é professora, assistente social
e doutoranda em Serviço Social na Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ).
2
- A cultura do estupro começa no nascimento
Quando uma família dá boas-vindas a um bebê, o
recém-nascido vem com várias expectativas: se for menino, espera-se que
ele seja agressivo; se for menina, espera-se que seja delicada. São
scripts pré-determinados para cada gênero. "O conceito de gênero surge
para questionar a ideia de uma essência ou natureza que explique os
comportamentos", diz a pesquisadora Jane Felipe de Souza, da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). "É essa necessidade de se pautar em
aspectos biológicos para justificar diferenças, as colocando como desigualdade,
inferioridade, que o conceito de gênero procura combater."
Como aponta Arielle Sagrillo, doutoranda em
psicologia forense na Universidade de Kent, na Inglaterra, a sociedade cria
expectativas muito grandes para ambos os gêneros. "Não permitimos que as
crianças e adultos transitem entre esses espaços. Desde cedo dizemos a
esses sujeitos o que eles devem ser, antes mesmo que possam descobrir o que
querem, o que lhes afeta e como lidam com suas próprias emoções",
afirma.
Dentro das expectativas, observa a advogada americana Reshma Saujani, os meninos são criados para serem corajosos e
se arriscarem, enquanto as meninas são criadas para buscarem a delicadeza e a
perfeição. Da mesma forma, espera-se que eles sejam mais agressivos
("Homem de verdade não chora", não é mesmo?) e que elas se sintam
responsáveis — pela casa, pelos filhos, pelo companheiro e até mesmo pelas
violências que sofrem.
"Os homens são ensinados a usarem a
agressividade de maneira violenta, desde a infância são estimuladas a
vivenciarem sua sexualidade até um ponto de serem reconhecidos como pessoas que
'precisam de sexo', 'que perdem a cabeça por sexo', que se tornam
praticamente 'irracionais' quando o assunto é sexo",
explica Solyszko. "Isso faz com que as pessoas pensem que o estupro é
uma questão de sexo e sexualidade quando o estupro é uma questão de violência
porque se trata de uma agressão bárbara e brutal que invade o corpo de outra
pessoa."
3
- Existem vários mecanismos que propagam a cultura do estupro
Pense nos comerciais aos quais você assistiu
recentemente. Agora se concentre naqueles que possuem presença feminina. Reflita
ainda mais: em quantos deles as mulheres aparecem como um simples corpo para
agradar os homens? Quantos deles contam com piadas relacionadas às
aparências delas?
Tal representação é chamada de objetificação. Um
estudo realizado pela Associação Americana de Psicologia explica que "muitas
mulheres são objetificadas sexualmente e tratadas como objetos para serem
valorizadas por seu uso", o que só reforça a ideia de que a mulher é
uma coisa, e não um ser humano. Segundo Solyszko, além de ser patriarcal, a
sociedade em que vivemos é racista e capitalista. "Essas três dimensões de
dominação e de opressão vão permitir que as vidas e os corpos das mulheres
sejam explorados, mercantilizados, coisificados e, inclusive, agredidos,
mutilados, estuprados e assassinados."
4
- Você também contribui com a cultura do estupro
E não precisa ser um estuprador para que isso
aconteça. Ao consumir músicas que denigrem a mulher e disseminar vídeos,
imagens, comentários e piadas sexistas, por exemplo, você contribui para que a
objetificação da mulher seja reforçada. "Nessa cultura machista que só
pode se sustentar pela existência de uma sociedade patriarcal, são diversos os
mecanismos que vão das piadas que nos desqualificam para dirigir, para ser
engenheiras, para ser presidente do país até a violência sexual no transporte
público e nas ruas", pondera Izabel Solyszko.
Vale ressaltar que a violência contra a mulher não
se restringe ao estupro. Segundo uma pesquisa realizada pelo Instituto Avon em
parceria com o Data Popular, podem ser consideradas formas de assédio cantadas
ofensivas ou com apelo sexual indesejado; coerção; a violência física; a
desqualificação intelectual e a violência sexual, que vai desde o toque sem
consentimento até o estupro. Dados do Think Olga mostram que 48% dos assédios
são verbais e 68% deles ocorrem durante o dia.
5
- O estuprador pode ser um cara normal
Existem alguns mitos em torno dos estupradores,
sendo os principais deles o de que o agressor é uma pessoa estranha e o
segundo de que é um ser cheio de problemas psicológicos. Nenhuma dessas
afirmações são verdadeiras.
Um levantamento realizado pelo IPEA em 2014 aponta
que 24,1% dos agressores das crianças são os próprios pais ou padrastos, e 32,2% são amigos ou conhecidos da vítima.
Isso sem contar casos de violência contra a mulher dentro de relacionamentos
como namoros e casamentos, onde as linhas entre o consensual e a violência são
mais nebulosas.
Além disso, de acordo com Arielle Sagrillo, os
estudos que foram feitos sobre estupradores até o momento não identificaram
nenhum tipo de patologia. "O que leva um sujeito a cometer um
estupro pode ser uma série de coisas. Entre elas, um não entendimento de que o
que está fazendo é violência, não ver seu ato como violência sexual, e isso tem
relação com a educação. É uma questão cultural", afirma Sagrillo.
Ela explica ainda que existem várias "crenças
disfuncionais" em relação às mulheres que colabora para que os agressores
cometam a violência. "Só é estupro se for em um beco escuro",
"uma mulher se comportando ou vestindo uma roupa está pedindo para ser
estuprada", "mulheres secretamente desejam que o estupro
aconteça" e "o não quer dizer sim, ela deve estar fazendo
charme", são alguns deles.
6
- A vítima nunca é a culpada
Como reforça Izabel Solyszko,
"independentemente do nosso comportamento e da nossa aparência, nada,
absolutamente nada (nem que eu seja garota de programa, nem que eu seja
promíscua, nem que eu esteja bêbada, nem que eu esteja sozinha com vários
homens em um quarto), realmente nada vai justificar uma violência contra
mim".
No livro Missoula, de Jon Krakauer, a
promotora Suzy Boylan pondera que o estupro é o único crime em que presume que
a vítima esteja mentindo. "Se uma pessoa é assaltada num beco,
ficaríamos céticos com o depoimento da vítima só porque não havia testemunha
ocular? Nós iríamos duvidar da vítima de um roubo porque ela deixou a
porta de casa destrancada?", questiona.
O silenciamento e a culpabilização das vítimas são
alguns dos principais artifícios da cultura do estupro. "Se o sigilo
falha, o agressor ataca a credibilidade de sua vítima. Se não consegue
silenciá-la totalmente, ele tenta se certificar de que ninguém lhe dê
ouvidos. Para tanto, convoca um impressionante esquadrão de
argumentos, da negação mais descarada à racionalização mais sofisticada e
elegante", explica Judith Lewis Herman em "Trauma and Recovery".
"Depois de cada atrocidade, podem-se esperar ouvir as mesmas desculpas
previsíveis: jamais aconteceu; a vítima mente; a vítima exagera; a vítima que
provocou isso; e em todos os casos é o momento de esquecer o passado e seguir
em frente."
O problema é que a cultura do estupro está tão
enraizada na sociedade em que vivemos que não é só o agressor que apresenta tal
comportamento: profissionais da saúde e da lei
também o reproduzem. No relato que deu ao Fantástico, a vítima do
estupro coletivo no Rio de Janeiro contou que foi interrogada por vários homens
que expuseram imagens do crime para ela, além de realizarem questionamentos
absurdos como se já tinha feito sexo grupal. "É fácil esquecer que o dano
causado a uma vítima de estupro que é desacreditada pode ser no mínimo tão
devastador quanto o dano causado a um homem inocente que é injustamente acusado
de estupro", aponta Jon Krakauer em Missoula. "E, sem
dúvida, o segundo caso acontece com muito mais frequência."
Fonte: Revistagalileu
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